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 Isto escrevo para mim mesma. Endereço ao meu futuro agora que a realidade me chama e eu chamo a realidade, um vislumbre que dá aos escravos da mente um machado de correntes, escravos que, por sua vez, constroem uma parede de ilusão em benefício da escravidão da mente. Espere.

1, 2, 3, o experimento prova-me errada. 1, 2, 3, a vida prova-me errada. 1, 2, 3, eu digo. [Não sei.] 1, 2, 3, sou finalmente real.

Novamente estou trancafiada. Não sou mais.

Nós nos encontramos de novo, Realidade e eu. Sou novamente.

“Não vire as costas”, diz minha velha amiga Realidade.

Eu digo seiscentos silêncios. Realidade retruca.

“Como seria só me olhar nos olhos?”

“Estou ocupada imaginando.”

Realidade dá-me uma pancada na cabeça. Tenho uma ou duas palavras a dizer.

Realidade diz: “Olhe.”

Em meu sonho, sonho com a Realidade. Quando acordo vejo a Realidade. Converso com a Realidade.  Eventualmente, quando ela está distraída, cegada por imagens de outros, eu a olho nos olhos. Eu vejo o meu passado. Ela irá às vezes me deixar ver o meu futuro.

“Não gosto de esperar”, eu digo. A que a Realidade responde, “Todo esse tempo espero e você não me vê, é você que espera?”

O dia em que olho a Realidade nos olhos é o 6 de Julho. Tiro um pedaço do bolo. É meu aniversário.

Realidade permanece silente. Realidade diz seiscentos silêncios. Acredito que se silencia a Realidade quando ela começa a falar demais sobre seus próprios assuntos.

Quando me levanto, a cadeira está úmida. Foi um dia quente. O corpo não conta mentiras. Vou direto ao quarto do meu irmão só para checar. Nosso cachorro moribundo, leishmanioso, está no tapete; ele respira ainda.

E o que ela escreve para si mesma? Uma carta para o futuro agora que sabe que eu a conheço e que me insulta de peso suportável o bastante, um vislumbre que dá aos escravos da mente um machado de correntes, escravos que, por sua vez, constroem uma parede de ilusão em benefício da escravidão da mente. Eu não me queixo. Desde os tempos de Jó já era chamado de nomes afins. 

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